Já de algum tempo tem-se difundido no âmbito jurídico que o Direito Penal deveria ser utilizado como sendo a
ultima ratio, bem como, na aplicação do Direito, devam ser observados ao máximo os direitos e garantias fundamentais do cidadão que venha a ser investigado ou processado criminalmente. Estamos de acordo integralmente com tais premissas. A questão que se pretende na presente – e brevíssima – análise é tentar demonstrar que
há alguns equívocos nas premissas e conclusões que se têm tomado com fundamento em
ideais garantistas, incorrendo-se – não raras vezes – no que temos denominado de
garantismo hiperbólico monocular, hipótese diversa do sentido proposto por Luigi Ferrajoli (ao menos em nossa leitura).
Se é possível definir de forma bastante sintética e inicial, a tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente os
direitos fundamentais
(também os deveres fundamentais,dizemos) estampados na Constituição. Normas de hierarquia inferior (e até em alterações constitucionais) ou então interpretações judiciais não podem solapar o que já está (e bem) delineado constitucionalmente na seara dos direitos (e deveres) fundamentais. Embora eles não estejam única e topicamente ali, convém acentuar já aqui que o art. 5º da Constituição está inserto em capítulo que trata “
dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de maximizar os fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais os valores e critérios que possam
limitar ou conformar constitucionalmente o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
Não temos dúvidas: a Constituição Federal brasileira
é garantista e assenta seus pilares nos princípios ordenadores de um Estado Social e Democrático de Direito, tendo como fundamentos, dentre outros, o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana. Os objetivos fundamentais consistem – dentre outros – na construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I e III, CF/88).
Se a Constituição é o ponto de partida para (também) a análise (vertical)
(1) do influxo dos princípios fundamentais de natureza penal e processual penal, decorre daí que o processo hermenêutico não poderá se assentar sobre fórmulas rígidas e pela simples análise
pura (muito menos literal) dos textos dos dispositivos legais (inclusive da própria Constituição). Há se buscar o conteúdo da norma, sua essência.
Parece simples visualizar que compreendemos que a Constituição ocupa uma função central no sistema vigente (sem gerar um
panconstitucionalismo, enfatizamos), podendo-se dizer que seus comandos se traduzem como
ordenadores e
dirigentes (no sentido fraco) aos criadores e aos aplicadores (intérpretes) das leis (aí incluída a própria Constituição, por evidente). Como salienta Maria Fernanda Palma, “a Constituição que define as obrigações essenciais do legislador
(2) perante a sociedade. Ora, esta
função de protecção activa da Sociedade configura um Estado não meramente liberal, no sentido clássico, mas promotor de bens, direitos e valores”.
(3) Nessa linha, compreendemos também deva ser a interpretação do próprio conteúdo dos dispositivos constitucionais.
Para nós, significa que a compreensão e defesa dos ordenamentos penal e processual penal também reclamam uma interpretação
sistemática dos princípios, regras e valores constitucionais para tentar justificar que, a partir da Constituição Federal de 1988, há realmente
novos paradigmas influentes em matéria penal e processual penal.
Por esse espectro, importa que, diante de uma Constituição que preveja, explícita ou implicitamente, a
necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados, incumbe o dever de se visualizarem os contornos (integrais, e não monoculares
, muito menos de forma hiperbólica) do sistema garantista.
Precisamos ser sinceros e incisivos (sem qualquer demérito a quem pensa em contrário): têm-se encontrado muitas e reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do “
garantismo penal”, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um
garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada
a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados. Relembremos: da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do
pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos fundamentais não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como muito bem sintetizado por Paulo Rangel,
(4) a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo).
Não por outro motivo que pensamos que o Tribunal Constitucional Alemão também (embora não só por isso) desenvolveu (e muito bem) a necessidade de obediência (integral) à proporcionalidade na criação e aplicação das regras, evitando-se excessos (
übermaβverbot) e também deficiências (
untermaβverbot) do Estado na proteção dos interesses individuais e coletivos. Ainda em sede exemplificativa, entendemos que a teoria da
Constituição Dirigente de Canotilho restou diretamente influenciada pela realidade imposta pelo regime totalitário em Portugal, reclamando-se a defesa irrestrita dos postulados fundamentais de uma Constituição Democrática.
Sem pretensão de esgrimir todos os desdobramentos da teoria garantista – até porque incabível nos limites ora propostos –, cumpre destacar que a questão fundamental do pensamento do mestre italiano decorre da necessidade de que se devesse observar rigidamente os direitos fundamentais dos cidadãos (o que até então não ocorria), valorando-se,
substancialmente, os princípios maiores estampados na Constituição.
Segundo a fórmula garantista, na produção das leis (e também nas suas interpretações) seus conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e valores estampados nas Constituições dos Estados Democráticos em que vigorem. Assim, todos os direitos fundamentais equivalem a
vínculos de substância, que, por sua vez,
condicionam a validez da essência das normas produzidas (e
também nas
suas aplicações), expressando, ao mesmo tempo, os fins aos quais está orientado o denominado Estado Constitucional de Direito.
(5) Em sua construção, as garantias são verdadeiras técnicas insertas no ordenamento que têm por finalidade
reduzir a distância estrutural entre a normatividade e a efetividade, possibilitando-se, assim, uma máxima eficácia dos direitos fundamentais segundo determinado pela Constituição.
(6) Para Ferrajoli, o sistema garantista tem pilares firmados sobre dez princípios fundamentais que, ordenados, conectados e harmonizados sistemicamente, determinam as "regras do jogo fundamental" de que se incumbe o Direito Penal e também o Direito Processual Penal.
(7)
Parece bastante simples constatar que a Teoria do Garantismo se traduz em verdadeira tutela daqueles valores ou direitos fundamentais cuja satisfação,
mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do Direito Penal. Vale dizer: quer-se estabelecer
uma imunidade –
e não im(p)unidade – dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e também a proteção dos interesses coletivos.
(8) Se todos os Poderes estão vinculados a esses paradigmas – como de fato estão –, especialmente é o Poder Judiciário que tem o dever de dar garantia aos cidadãos (
sem descurar da necessária proteção social) diante das eventuais violações que eles virem a sofrer. Desse modo, a sujeição do juiz à lei não mais é – como sempre foi pelo prisma positivista tradicional – à letra da lei (ou mediante sua interpretação meramente literal) de modo acrítico e incondicionado, senão uma sujeição à lei, desde que coerente com a Constituição vista como um todo.
De modo exemplificativo (e reproduzindo argumentos tecidos noutra oportunidade),
(9) é de se ver que, muitas vezes de forma acrítica (ou então sem acorrer à fonte original), há
propagação por meras repetições de que a teoria do garantismo penal de Ferrajoli não autorizaria o Ministério Público a realizar atos de investigação. Em nossa compreensão, um equívoco,
maxima venia. Como se vê das próprias palavras de Ferrajoli, defende abertamente o doutrinador italiano que, muitas vezes, é evidente que as investigações da polícia devem ser efetuadas em segredo, sob a
direção da acusação pública. Mas isso significa apenas que não devem as provas ser realizadas pelo juiz.
(10) É o que deflui do oitavo princípio fundamento: princípio acusatório, ou separação do juiz e da acusação. Foi o que disse claramente o próprio Ferrajoli em palestra proferida no ano de 2007 em Porto Alegre/RS. Ao ser indagado sobre os poderes investigatórios do Ministério Público, foi explícito o mestre italiano no sentido de que o Ministério Público deve
investigar, mas no exercício de seu mister (o que é óbvio) está vinculado aos preceitos fundamentais garantistas insertos na Constituição quando realizar atos de investigação.
(11) Nada mais.
Quando dizemos que tem havido uma
disseminação de uma ideia apenas parcial dos ideais garantistas (daí nos referirmos a um garantismo hiperbólico monocular) é porque muitas vezes não se tem notado que não estão em voga (reclamando a devida e necessária proteção) exclusivamente os direitos fundamentais, sobretudo os individuais.
Se compreendidos sistemicamente e contextualizados à realidade vigente, há se ver que
os pilares do garantismo não demandam a aplicação de suas premissas unicamente como forma de afastar os excessos injustificados do Estado à luz da Constituição (proteção do mais fraco). Quer-se dizer que não se deve invocar a aplicação exclusiva do que se tem chamado de “
garantismo negativo”. Hodiernamente (e já assim admitia Ferrajoli embrionariamente, embora não nessas palavras),
(12) o garantismo penal não se esgota numa visão de coibir (apenas) excessos do Leviatã (numa visão hobesiana). Em percuciente análise do tema ora invocado, Gilmar Mendes já se manifestou de forma abstrata acerca dos
direitos fundamentais e dos deveres de proteção,
(13) assentando que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção [...], expressando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris,
não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que
impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não-observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”. É o que se tem denominado – esse dever de proteção – de
garantismo positivo.
Sintetizando, em nossa compreensão, embora construídos por premissas e prismas um pouco diversos, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que
não ultrapassar as balizas do excesso e da deficiência é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o
equilíbrio na proteção de
todos (individuais ou coletivos)
direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior.
Quer-se dizer com isso que, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a
necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também (segundo pensamos) na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável.
Se a onda continuar como está, poderá varrer por completo a também necessária proteção dos interesses sociais e coletivos. Então poderá ser tarde demais quando constatarmos o equívoco em que se está incorrendo no presente ao se maximizar exclusiva e parcialmente as concepções fundamentais do Garantismo Penal.