A Justiça Federal de Canoas (RS) concedeu a um pai, liminarmente, o direito de receber salário-maternidade. Assistido pela Defensoria Pública da União, o autor recorreu à Justiça após ter tentado, sem sucesso, obter o benefício junto ao INSS. Viúvo e com uma filha recém-nascida, o sujeito pretendia dedicar-se aos cuidados com o bebê após o falecimento da esposa, ocorrido cerca de 11 horas após o parto.
Em razão da peculiaridade, transcrevo a decisão aqui no blog:
5008686-28.2012.404.7112/RS
DECISÃO (LIMINAR/ANTECIPAÇÃO DA TUTELA)
Postula o autor, LCPP, o benefício de salário-maternidade, tendo em vista o óbito de sua esposa onze horas após o nascimento da filha do casal, KLVP, ocorrido em 01/03/2012.
O benefício do salário-maternidade vem regulado no art. 71 da Lei 8213/91, o qual prevê como beneficiário apenas a mulher.
Esta, pois é a regra estabelecida para este benefício, não cabendo ao Judiciário alterá-la em situações normais.
As regras devem ser obedecidas não apenas por serem regras, com fulcro na idéia de autoridade. No ensinamento de Humberto Ávila, as regras também têm a função de pré-decidir o meio de exercício do poder. Afastam a incerteza, a falta de resolução de um conflito e evitam o surgimento do conflito moral, enfim, eliminam ou reduzem a arbitrariedade (in Teoria dos princípios. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 112-4).
No entanto, em casos excepcionais, as regras podem ser superadas. Na visão do mesmo doutrinador, a superação da regra será tanto mais flexível quanto menos imprevisibilidade, ineficiência e desigualdade a superação provocar. O afastamento da regra, pois, não poderá prejudicar a promoção da finalidade subjacente à regra, nem a segurança jurídica que suporta as regras, em virtude da pouca probabilidade de reaparecimento freqüente de situação similar, por dificuldade de ocorrência ou de comprovação. O grau de resistência da regra depende do quanto a solução individualizada afeta a promoção da justiça para a maior parte dos casos, ou seja, deve ser observado o equilíbrio entre justiça geral e individual (Ávila, Humerto. Idem, pp. 114-20).
No caso sob exame, estão presentes requisitos suficientes para flexibilizar a regra contida no art. 71 da Lei 8213/91.
Com efeito, A família e a infância recebem proteção constitucional nos arts. 226 e 227, a qual abrange, no âmbito da Previdência Social, a proteção à maternidade, especialmente à gestante, na forma do art. 201, inc. II da Carta Política.
Portanto, a contingência social protegida pelo benefício não se limita ao risco de desemprego da gestante, mas se estende à própria maternidade, 'de sorte que também se encontra aqui, sob o manto da proteção previdenciária, a relação maternal e a própria infância, indiretamente' (FORTES, Simone Barbisan, e PAULSEN, Leandro. Direito da Seguridade Social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 149/150).
Tanto é assim que a Lei n. 10.710/03, ao acrescentar art. 71-A à Lei 8213/91, ampliou o salário-maternidade às mães adotantes, 'o que demonstra ser o benefício uma forma de proteger a relação mãe-filho, portanto expressão da proteção à infância, tida como direito de atendimento prioritário pela Constituição Federal' (FORTES, Simone Barbisan, idem, p. 150).
Ademais, a Constituição Federal confere igualmente ao homem e à mulher os direitos e deveres decorrentes da sociedade conjugal, dentre os quais a guarda e proteção dos filhos em comum (CF, art. 5º, inc. I; art. 226, § 5º).
A hipótese veiculada nestes autos tem a nota da excepcionalidade suficiente para receber um tratamento individualizado: cuida-se de genitora que faleceu cerca de onze horas depois do parto, sendo o benefício solicitado para o pai. Esse benefício, contudo, como foi salientado, não é destinado apenas aos genitores, mas também, e principalmente, ao recémnascido, para que em seu favor sejam concretizados os direitos inseridos no art. 227 do Estatuto Fundamental, especialmente o direito à vida, à saúde, à alimentação e à dignidade. É esta a finalidade da instituição do salário-família, a qual fica prejudicada em razão do falecimento prematuro da mãe.
Para que esta finalidade não recaia na inocuidade, impõe-se que seja conferida ao art. 71 da Lei 8213/91 uma interpretação teleológica, sistemática e consentânea com a Constituição Federal.
O salário-maternidade proporciona à mãe a possibilidade de cuidar da criança em tempo integral, nos primeiros meses de vida, fator essencial ao seu desenvolvimento e à sua sobrevivência. Na falta da genitora, cabe ao pai prestar esse cuidado ao neonato, o que deve ser assegurado pelo Estado.
A concessão do benefício ao genitor, neste caso específico, cumpre aqueles requisitos para superação da regra: há excepcionalidade; a finalidade inerente à regra não é prejudicada, ao invés, é promovida; a medida não causa desigualdade em razão de sua pouca ocorrência, nem afeta o equilíbrio entre a justiça individual e coletiva. Vale dizer, o benefício segue em regra restrito às mulheres; apenas neste caso extraordinário é que pode ser alcançado ao genitor.
Convém ressaltar que a especialidade da situação é corroborada pela escassa jurisprudência a respeito do assunto.
O requisito urgência resta demonstrado pelo caráter alimentar do saláriomaternidade, e pela necessidade premente de se proporcionar ao recém nascido o convívio com o genitor nos primeiros meses de vida.
Nesse sentido, há decisão da 2ª Turma Recursal do Paraná concedendo ao pai viúvo o benefício: (...) (RECURSO CÍVEL Nº 5002217-94.2011.404.7016/PR, por maioria, julgado em 28/02/2012)
Ante o exposto, presentes os requisitos da verossimilhança das alegações, bem como o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, defiro a antecipação da tutela e determinando ao INSS que, no prazo de 20 dias, implante o benefício de salário-maternidade em favor do autor.
Requisite-se à AADJ Canoas a implantação do benefício deferido, no prazo de 20 dias. Desde já advirto que em caso de descumprimento da presente decisão, no prazo acima, fixo multa ao INSS, no valor de R$ 50,00 (cinqüenta reais) ao dia por descumprimento. Friso que não haverá nova intimação para cumprimento da decisão, no caso de transcurso do prazo.
Cite-se o INSS, para contestar, no prazo de 30 dias, ou formular proposta de acordo.
Intimem-se desta decisão.
Canoas, 10 de julho de 2012.
Rafael Martins Costa Moreira
Juiz Federal Substituto na Titularidade Plena
Não há dúvida de que esse juiz proferiu uma decisão fazendo justiça!
ResponderExcluirO que me traz um desconforto (e não porque eu entenda que a atuação judicial deva pautar-se na estrita legalidade; ao contrário, por vezes deve sim ultrapassar os limites do texto da lei justamente para cobrir as lacunas que a legislação apresenta) é que não há previsão de que o salário maternidade seja devido aos pais, tampouco de que o beneficiário é a criança e não o próprio segurado.
Acredito que o grande ponto para reflexão seja estender as garantias de salário maternidade, licença maternidade também aos pais.
Uma licença paternidade mais estendida do que a que se tem hoje e eventual salário paternidade em situações específicas poderiam auxiliar a criar a cultura de pais participativos, que partilhem com as mães os primeiros meses de vida de seus filhos.