Por Ticiano Figueiredo
Advogado
Artigo retirado da Revista Conjur
No dia 27 de janeiro de 2013 a população brasileira acordou com a triste e desesperadora notícia de que mais de 200 pessoas haviam morrido em razão de um incêndio ocorrido no interior de uma casa noturna, na cidade de Santa Maria, interior do estado do Rio Grande do Sul.
Tão logo o fato veio à tona, mídia escrita, falada e televisionada imediatamente trataram de buscar um culpado por toda aquela situação. Inicialmente teria sido o segurança que, por não ter visto fumaça nem fogo, impediu, em um primeiro momento, a saída dos clientes, pensando se tratar de uma tentativa de se evadir do local sem pagar o que foi consumido.
Em seguida a “culpa” passou a recair sobre a banda, que teria programado um show pirotécnico — ao que parece uma característica do grupo musical, bastante conhecido na região — sem observar as normas de segurança.
Por fim, a responsabilidade chegou aos sócios do estabelecimento, eis que em tese estariam funcionando com o alvará vencido e sem equipamentos e plano de fuga adequados para o local.
Não demoraria muito e — diante da enorme repercussão que os fatos tomaram na imprensa — alguma autoridade pública se valeria dessa tragédia para catapultar sua exposição nos órgãos de imprensa nacional. Não demorou!
No dia seguinte a esses tristes fatos, a população brasileira acordou com a notícia de que foi decretada a prisão temporária dos donos do estabelecimento comercial onde o incêndio ocorreu e dos músicos que teriam iniciado o show pirotécnico no interior da boate.
A fim de justificar o seu pedido de segregação cautelar dos envolvidos, o delegado responsável pelo inquérito policial apareceu em rede nacional alegando que tal medida foi tomada para ajudar a esclarecer como o fogo começou e por que as pessoas não conseguiam sair da boate.
Ou seja, escancaradamente, a autoridade policial, responsável pelas investigações prendeu os supostos responsáveis por esses tristes fatos, para que estes possam esclarecer questões técnicas, distorcendo, assim, de forma flagrante o uso indevido dessa gravíssima medida cautelar. Ora, não bastava interrogá-los para isso?
Conforme se depreende do artigo 1° da Lei 7.960/89, a prisão temporária é medida de exceção no Direito Penal brasileiro é somente deve ser utilizada quando houver fundadas razões de autoria e participação de um cidadão nos crimes abaixo elencados e desde que sejam imprescindíveis para o deslinde da investigação:
a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°);
b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);
c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°);
e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);
f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);
g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);
h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);
i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°);
j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285);
l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;
m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas;
n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);
o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986).
Ora, em qual dessas hipóteses aquelas pessoas se enquadrariam? Homicídio doloso, em razão de um possível dolo eventual? Só se considerarmos que os donos do estabelecimento e os artistas da banda em algum momento assumiram o risco e aderiram ao resultado morte. Nesse caso, impõe-se reconhecer que o dolo destes foi literalmente o de suicídio, já que um dos sócios, inclusive, está internado em razão da fumaça inalada e um dos artistas morreu.
Mas, ainda que se admitisse a hipótese de homicídio doloso, é certo que até o presente momento a instância penal não foi instaurada, não há sequer denúncia oferecida. Há, sim, uma série de fatos a serem esclarecidos, os quais, a princípio, não necessitam da prisão dos donos da boate e dos músicos para serem explicados.
Mais uma vez, portando, o Direito Penal teve sua função destorcida pelo "Estado Midiático Policialesco sem Direito".
O que aconteceu em Santa Maria foi extremamente trágico e doloroso para toda a sociedade, em especial para os familiares das vítimas. Mas, pelo que se teve viu na mídia até o momento, sequer foi instaurada a ação penal e não há qualquer fato que justifique a prisão dos responsáveis — nem a notícia de que os computadores da boate não foram queimados, mas sim desapareceram do local. Porém, se este foi o argumento utilizado para decretação da medida cautelar de segregação da liberdade, pobre dos músicos, que sequer poderiam entregar os tais computadores, já que não são donos do local...
Ademais, a recentíssima mudança na norma processual, ao trazer a possibilidade de uso de medidas alternativas à prisão, escancarou a excepcionalidade desse tipo de cautelar. Note-se que seria possível ao juiz, por exemplo, proibir os investigados de comparecer ao local dos fatos, de manter relações ou se aproximar de determinada pessoa, poderia, ainda, impor a estes o comparecimento periódico em juízo, dentre outras.
É inequívoco, portanto, o uso indevido feito pelo delegado desse tipo de medida cautelar de segregação da liberdade. Mormente quando não se sabe nem se estes “presos” responderão por crime doloso ou culposo, crime cuja pena final será privativa de liberdade ou restritiva de direito.
Ou seja, muito provavelmente a medida cautelar a que os empresários e músicos encontram-se submetidos é muito mais gravosa do que futura e incerta sentença definitiva.
A não ser que ordem pública, a instrução criminal, a futura aplicação da lei penal ou ordem econômica estivessem em risco — o que deveria ser demonstrado com base em dados concretos e não a partir de meras ilações e criações mentais dos órgãos investigatórios — nada justifica a prisão daqueles cidadãos.
Seria prudente, sim, prender as autoridades públicas responsáveis por esse manifesto abuso de poder. Da mesma forma seria prudente providenciar a inclusão de um novo crime no ordenamento jurídico pátrio: "excessiva vontade de aparecer na mídia".
Note-se que não se está aqui falando sobre a responsabilidade civil acerca dos fatos ocorridos na cidade de Santa Maria. Essa sim é objetiva e, provavelmente, imporá aos responsáveis pelo local da festa o ônus de ressarcir todos os danos morais e materiais das vítimas e familiares da tragédia daquela cidade.
Contudo, essa objetividade jamais poderá alcançar a responsabilidade penal segundo os ditamos do nosso ordenamento jurídico pátrio. Essa deverá ser apurada respeitando os princípios e garantias individuais conseguidas a duras penas pela nossa sociedade, sem, jamais, sofrer qualquer interferência dos veículos de comunicação.
Lamentável...
Às vítimas e familiares dessa tragédia nacional, meus sinceros sentimentos. Que Deus possa confortá-los nesse momento de dor incontrolável!
Ao Direito Penal, meus pêsames diante da morte da justiça e do Estado Democrático de Direito... Não temos mais justiça... Temos justiceiros!