sexta-feira, 30 de março de 2012

Presunção de violência contra menor de 14 anos em estupro é relativa


   Notícia veiculada hoje no site do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais):
   "Para a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a presunção de violência no crime de estupro tem caráter relativo e pode ser afastada diante da realidade concreta. A decisão diz respeito ao artigo 224 do Código Penal (CP), revogado em 2009.
    Segundo a relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, não se pode considerar crime o ato que não viola o bem jurídico tutelado – no caso, a liberdade sexual. Isso porque as menores a que se referia o processo julgado se prostituíam havia tempos quando do suposto crime.
   Dizia o dispositivo vigente à época dos fatos que “presume-se a violência se a vítima não é maior de catorze anos”. No caso analisado, o réu era acusado de ter praticado estupro contra três menores, todas de 12 anos. Mas tanto o magistrado quanto o tribunal local o inocentaram, porque as garotas “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”.
   Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a própria mãe de uma das supostas vítimas afirmara em juízo que a filha “enforcava” aulas e ficava na praça com as demais para fazer programas com homens em troca de dinheiro.
   “A prova trazida aos autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora imoral e reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os tipos penais pelos quais foi denunciado", afirmou o acórdão do TJSP, que manteve a sentença absolutória.
   Divergência
   A Quinta Turma do STJ, porém, reverteu o entendimento local, decidindo pelo caráter absoluto da presunção de violência no estupro praticado contra menor de 14 anos. A decisão levou a defesa a apresentar embargos de divergência à Terceira Seção, que alterou a jurisprudência anterior do Tribunal para reconhecer a relatividade da presunção de violência na hipótese dos autos.
   Segundo a ministra Maria Thereza, a Quinta Turma entendia que a presunção era absoluta, ao passo que a Sexta considerava ser relativa. Diante da alteração significativa de composição da Seção, era necessário rever a jurisprudência.
   Por maioria, vencidos os ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior, a Seção entendeu por fixar a relatividade da presunção de violência prevista na redação anterior do CP. Relatividade
   Para a relatora, apesar de buscar a proteção do ente mais desfavorecido, o magistrado não pode ignorar situações nas quais o caso concreto não se insere no tipo penal. “Não me parece juridicamente defensável continuar preconizando a ideia da presunção absoluta em fatos como os tais se a própria natureza das coisas afasta o injusto da conduta do acusado”, afirmou.
   “O direito não é estático, devendo, portanto, se amoldar às mudanças sociais, ponderando-as, inclusive e principalmente, no caso em debate, pois a educação sexual dos jovens certamente não é igual, haja vista as diferenças sociais e culturais encontradas em um país de dimensões continentais”, completou.
   “Com efeito, não se pode considerar crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado – a liberdade sexual –, haja vista constar dos autos que as menores já se prostituíam havia algum tempo”, concluiu a relatora.
   O número deste processo não é divulgado em razão de sigilo judicial."

  Meu Pitaco: Aplicação do princípio da ofensividade. Para ser crime não basta simplesmente violar a lei, é necessário que a conduta tenha atacado concretamente o bem jurídico protegido pela norma. A lei penal não é criada com a finalidade de proteger a si mesma ou de proteger o Direito Penal, mas sim de proteger um valor fundamental da sociedade. Logo, violar a lei não basta, é preciso que haja lesão (ou efetiva ameaça de lesão) àquilo que a lei pretendia proteger.
   Com o referido princípio, busca-se evitar que a lei penal seja utilizada como instrumento político na tentativa de suprir a deficiência de outros setores. Além disso, também pretende evitar que a pena seja utilizada somente com função de "prevenção geral positiva", ou seja, função de revigorar a vigência da própria lei, de afirmar a eficiência do Direito Penal.

5 comentários:

  1. Matéria publicada na Veja sobre o caso:

    http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/onde-e-que-vamos-parar-stj-absolve-homem-que-estuprou-tres-meninas-de-12-anos-e-revolta-senadores/

    Na reportagem da Veja, as autoridades entrevistadas criticam a relativização feita pelo STJ ao crime de "estupro de vulnerável". Mas, pelo o que foi noticiado pelo IBCCRIM (conforme postagem), o julgado diz respeito à antiga regulamentação dos crimes sexuais. Trata-se da velha questão de ser ou não relativa a presunção do já revogado artigo 224 do CP.

    Não se discutiu, a princípio, o novo tipo penal do "estupro de vulnerável", embora a questão seja interligada.

    Não tenho acesso a todo o julgado, pois o processo correu em sigilo. Mas acho que está havendo uma confusão no que vem sendo noticiado (ou o confuso sou eu!)

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  2. Essa polemica exige dois debates: primeiro, quanto ao fracasso do Poder Legislativo (e da sociedade) ao crer que o Direito Penal - com a criação de tipos criminalizantes e exacerbação de penas- seja capaz de evitar determinadas condutas (função preventiva), restando apenas a punição (função retributiva)e, portanto, a necessidade de pensar se isso basta (acredito que não). Segundo, a gravíssima situação das crianças vulneráveis a situações como a prostituição. Essa se constitui uma grotesca realidade, mas que deveria ser tratada com politicas publicas, com a redução de desigualdades e criação de reais oportunidades. Olhando para esse caso concreto poderia-se pensar: mas que absurdo, quer dizer então que esse sujeito que manteve relação sexual com três crianças vai ficar impune só porque elas já se prostituíam? E o Estado, que responsabilidade tem em situações como essa? Em que condições essas crianças ou suas famílias viviam (e vivem)?
    Por isso acredito que o debate sobre o Direito, e principalmente no que se refere ao Direito Penal, é um debate sobre sociedade. Que sociedade queremos?

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  3. Diante das inúmeras críticas à decisão, o STJ publicou hoje uma nota da esclarecimento no seu site, vou transcrevê-la:

    Esclarecimentos à sociedade

    1. O STJ não institucionalizou a prostituição infantil.

    A decisão não diz respeito à criminalização da prática de prostituição infantil, como prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no Código Penal após 2009.

    A decisão trata, de forma restrita e específica, da acusação de estupro ficto, em vista unicamente da ausência de violência real no ato.

    A exploração sexual de crianças e adolescentes não foi discutida no caso submetido ao STJ, nem mesmo contra o réu na condição de "cliente". Também não se trata do tipo penal "estupro de vulnerável", que não existia à época dos fatos, assim como por cerca de 70 anos antes da mudança legislativa de 2009.

    2. Não é verdade que o STJ negue que prostitutas possam ser estupradas.

    A prática de estupro com violência real, contra vítima em qualquer condição, não foi discutida.

    A decisão trata apenas da existência ou não, na lei, de violência imposta por ficção normativa, isto é, se a violência sempre deve ser presumida ou se há hipóteses em que menor de 14 anos possa praticar sexo sem que isso seja estupro.

    3. A decisão do STJ não viola a Constituição Federal.

    O STJ decidiu sobre a previsão infraconstitucional, do Código Penal, que teve vigência por cerca de 70 anos, e está sujeita a eventual revisão pelo STF. Até que o STF decida sobre a questão, presume-se que a decisão do STJ seja conforme o ordenamento constitucional. Entre os princípios constitucionais aplicados, estão o contraditório e a legalidade estrita.

    Há precedentes do STF, sem força vinculante, mas que afirmam a relatividade da presunção de violência no estupro contra menores de 14 anos. Um dos precedentes data de 1996.

    O próprio STJ tinha entendimentos anteriores contraditórios, e foi exatamente essa divisão da jurisprudência interna que levou a questão a ser decidida em embargos de divergência em recurso especial.

    4. O STJ não incentiva a pedofilia.

    As práticas de pedofilia, previstas em outras normas, não foram discutidas. A única questão submetida ao STJ foi o estupro - conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça - sem ocorrência de violência real.

    A decisão também não alcança práticas posteriores à mudança do Código Penal em 2009, que criou o crime de "estupro de vulnerável" e revogou o artigo interpretado pelo STJ nessa decisão.

    5. O STJ não promove a impunidade.

    Se houver violência ou grave ameaça, o réu deve ser punido. Se há exploração sexual, o réu deve ser punido. O STJ apenas permitiu que o acusado possa produzir prova de que a conjunção ocorreu com consentimento da suposta vítima.

    (continua...)

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  4. (...continuação)

    6. O presidente do STJ não admitiu rever a decisão.

    O presidente do STJ admitiu que o tribunal pode rever seu entendimento, não exatamente a decisão do caso concreto, como se em razão da má repercussão.

    A hipótese, não tendo a decisão transitado em julgado, é normal e prevista no sistema. O recurso de embargos de declaração, já interposto contra decisão, porém, não se presta, em regra, à mudança de interpretação.

    Nada impede, porém, que o STJ, no futuro, volte a interpretar a norma, e decida de modo diverso. É exatamente em vista dessa possível revisão de entendimentos que o posicionamento anterior, pelo caráter absoluto da presunção de violência, foi revisto.

    7. O STJ não atenta contra a cidadania.

    O STJ, em vista dos princípios de transparência que são essenciais à prática da cidadania esclarecida, divulgou, por si mesmo, a decisão, cumprindo seu dever estatal.

    Tomada em dezembro de 2011, a decisão do STJ foi divulgada no dia seguinte à sua publicação oficial. Nenhum órgão do Executivo, Legislativo ou Ministério Público tomou conhecimento ou levou o caso a público antes da veiculação pelo STJ, por seus canais oficiais e de comunicação social.

    A polêmica e a contrariedade à decisão fazem parte do processo democrático. Compete a cada Poder e instituição cumprir seu papel e tomar as medidas que, dentro de suas capacidades e possibilidades constitucionais e legais, considere adequadas.

    O Tribunal da Cidadania, porém, não aceita as críticas que avançam para além do debate esclarecido sobre questões públicas, atacam, de forma leviana, a instituição, seus membros ou sua atuação jurisdicional, e apelam para sentimentos que, ainda que eventualmente majoritários entre a opinião pública, contrariem princípios jurídicos legítimos.

    Fonte: Site do STJ.

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  5. Decisão do STJ acabou sem efeito:

    Informativo 501:
    RECURSO MANIFESTAMENTE INCABÍVEL. INTERRUPÇÃO DE PRAZO. A Seção, por maioria, constatou a intempestividade dos embargos de divergência em que se reconheceu como relativa a presunção de violência no crime de estupro praticado contra menores de quatorze anos, sob o fundamento de que teria havido consentimento das vítimas. No caso, houve a interposição de agravo regimental contra o acórdão que assentou ser absoluta a presunção de violência, e por ser manifestamente incabível (em razão de ser erro grosseiro e inescusável sua interposição contra decisão colegiada), não houve suspensão nem interrupção do prazo para outros recursos. Após o não conhecimento do agravo regimental, foram opostos embargos declaratórios, os quais foram rejeitados, o que culminou na interposição dos embargos de divergência. Dessa forma, a Seção entendeu que os declaratórios não poderiam integrar o referido acórdão porque se destinavam a esclarecer a decisão do regimental e se fossem para atacar o acórdão seriam intempestivos. Também não poderia ser aplicado o princípio da fungibilidade recursal com o intuito do agravo ser recebido como declaratórios, porque seriam intempestivos. Portanto, o julgamento do agravo regimental e dos embargos de declaração não reabriu a possibilidade dos embargos de divergência disporem sobre o mérito do acórdão em questão, visto que o prazo para sua interposição não foi suspenso nem interrompido. Assim, no caso, restabeleceu-se a decisão da Quinta Turma que entendeu ser absoluta a presunção de violência em estupro contra menor de quatorze anos. Precedentes citados do STF: AI 744.297-SP, DJe 5/2/2010; RE 588.378-RJ, DJe 30/4/2010; do STJ: EDcl no AgRg no RMS 36.247-PR, DJe 10/4/2012, e AgRg no Ag 1.001.896-SP, DJe 16/6/2008. EDcl nos EREsp 1.021.634-SP, Rel. originária Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. para acórdão Min. Gilson Dipp, julgados em 8/8/2012.

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