quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A teoria das janelas quebradas

Artigo publicado no Jornal Diário Popular de 08/11/2012 (hoje) pelo Delegado de Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Roger Brutti, reproduzindo texto anterior que ele já havia publicado:


Sobre o mesmo assunto, texto publicado Arthur Lucas no blog "Pensar não dói":

Tolerância Zero e a Teoria das Janelas Quebradas:
Revoltados contra os abusos e crimes cruéis cometidos contra as pessoas ou contra o patrimônio, volta e meia alguns propõem que seja adotada uma Política de Tolerância Zero Contra o Crime. Prestando atenção ao discurso subjacente entre a maioria das manifestações deste tipo, porém, percebe-se uma grande incompreensão média acerca do que seja tal política, e em muitos casos identifica-se apenas uma vaga intenção de combater a violência com ainda maior violência, chegando ao ponto de defenderem ações truculentas francamente ilegais e mesmo criminosas por parte da população e dos agentes do Estado, revelando um espírito tão ou mais belicoso, anti-social e pernicioso que o daqueles a quem supostamente desejam combater.

Este artigo vem esclarecer o que é e o que não é uma Política de Tolerância Zero Contra o Crime, quais seus fundamentos históricos e teóricos, quais as ações que caracterizam uma aplicação coerente de tal filosofia e que benefícios se pode esperar desta aplicação.

O que a Política de Tolerância Zero não é:
A Política de Tolerância Zero Contra o Crime não é uma política de tapar o sol com a peneira em relação aos ilícitos cometidos pelas polícias durante o combate ao crime. Muito antes pelo contrário, é pressuposto de sua implantação a estrita legalidade dos atos policiais e o absoluto respeito ao Estado Democrático de Direito.

A Política de Tolerância Zero Contra o Crime não é uma proposta de tornar a polícia mais audaz, agressiva ou invasiva. Muito antes pelo contrário, é pressuposto de sua implantação a valorização do agente policial como representante de um Estado pacífico e mantenedor da ordem e da harmonia social em benefício de todos os seus cidadãos.

A Política de Tolerância Zero Contra o Crime não é baseada em qualquer forma de violência. Muito antes pelo contrário, é pressuposto de sua implantação que haja um grande desejo social de repelir a violência em todas as suas formas e manifestações, reconhecendo que não é possível mascarar a truculência nos calabouços do Estado com qualquer tipo de cosmética social.

Para deixar bem claro, a Política de Tolerância Zero Contra o Crime não é sequer uma política de enfrentamento direto do crime.

Bem, então o que é a Política de Tolerância Zero?
A Política de Tolerância Zero é uma estratégia indireta de combate ao crime, baseada na Teoria das Janelas Quebradas. É uma estratégia de manutenção da ordem pública, da segurança dos espaços de convivência social e da adequada prevenção de fatores criminógenos.

A Política de Tolerância Zero Contra o Crime inicia pela tomada de consciência do Estado da necessidade de primeiro cumprir seus deveres legais para com a população, oferecendo-lhe condições adequadas de desenvolvimento psicossocial e acesso aos serviçoes do Estado, depurando suas fileiras da corrupção e da venalidade, reconquistando a confiança da população e estabelecendo com ela a aliança que desde sempre deveria haver entre o Estado e seus cidadãos.

E o que é a Teoria das Janelas Quebradas?
A Teoria das Janelas Quebradas é o fundamento psicossociológico que estabelece uma ligação entre o grau de manutenção de ordem social e a vulnerabilidade do sistema social a uma escalada criminal.

O nome “Teoria das Janelas Quebradas” trata-se da alcunha com que ficou conhecido um estudo publicado em 1982 pelo cientista político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling na revista Atlantic Monthly, intitulado “The Police and Neiborghood Safety” (A Polícia e a Segurança da Comunidade). O estudo usava a imagem de janelas quebradas e não consertadas para explicar a lógica de decadência social que levava à infiltração da criminalidade em um ambiente até então saudável.

Descrição da Teoria das Janelas Quebradas
Imagine um bairro residencial de classe média, com casas com gramados bem cuidados, ruas limpas, ajardinadas e bem iluminadas. Este é um ambiente onde há percepção de ordem e sensação de segurança. Os imóveis residenciais e comerciais são valorizados, e o bairro é considerado um bom local para morar ou para instalar uma pequena atividade comercial, como uma loja, uma padaria ou o escritório de um profissional liberal.

Imagine agora que alguém jogue uma pedra na janela de uma casa e a quebre. Duas coisas podem acontecer:

1) Se o vidro quebrado for logo substituído, nenhum indício de desordem social permanece. O ambiente permanece saudável, e nenhum estímulo à desordem se insinua. Isso não quer dizer que o nível de desordem seja nulo, mas que existe investimento na manutenção de um ambiente saudável. Provavelmente existe também vigilância contra a desordem. A mensagem transmitida é: nós cuidamos do ambiente onde vivemos.

2) Se o vidro quebrado não for substituído, um indício claro de desordem social permanece. O ambiente foi violado e ninguém corrigiu o problema, e o estímulo à desordem surge. Isso não quer dizer que não existe interesse na ordem, mas que não há investimento nem esforço para manter o ambiente saudável. Provavelmente também não existe vigilância contra a desordem. A mensagem transmitida é: este ambiente é vulnerável.

Ora, se um ambiente passa a mensagem de ser bem cuidado e o outro de ser vulnerável, onde há de ocorrer preferencialmente a próxima ação desordeira?

Conseqüências da Teoria das Janelas Quebradas:
Uma janela quebrada não foi substituída. O sinal de vulnerabilidade à desordem foi dado. O próximo passo é um teste: outras janelas serão quebradas para ver se ninguém toma uma providência. Logo o prédio inicialmente atingido se encontrará com a maioria das janelas quebradas, e o sinal se tornará claro a todos que passarem em frente daquele prédio: este ambiente está se degradando, está se degenerando, está vulnerável.

As conseqüências são bastante impactantes: os imóveis começam a se desvalorizar. Casas são colocada à venda, tentando ainda pegar um bom preço pelo imóvel, e algumas ficam longos períodos sem ocupação. Novas janelas são quebradas e não são substituídas, e gramados deixam de ser aparados, indicando abandono do local. Eventualmente um imóvel é invadido, e o invasor obviamente não cuida do que não é seu. O ambiente começa a ficar com um aspecto sujo, cada vez pior.

Famílias e pessoas ordeiras começam a se mudar daquele ambiente, e desocupados e desordeiros começam a se mudar para aquele ambiente. Os comerciantes começam a ter menos lucro e cessam suas atividades ou tentam passar o ponto. Comércio de boa qualidade sai e entra comércio de quinquilharias e bares de quinta categoria. Uma boca-de-fumo se instala. O índice de furtos sobe nas imediações.

O Poder Público deixa de substituir luminárias quebradas. O lixo começa a se acumular nas ruas e o pavimento não é mais recuperado com a mesma freqüência do pavimento em outros bairros. Eventualmente uma via é bloqueada para reduzir o acesso da polícia ao local. Água e luz passam a ser ligadas clandestinamente. O local passa a ser conhecido como “barra-pesada”.

Todo um ciclo de desordem levando a mais desordem se estabelece, em uma espiral de degradação e degeneração do sistema social. No princípio ocorre uma substituição de moradores, mas em seguida o ambiente degenerado passa a produzir crianças que nascem e crescem nestas condições. A situação se agrava continuamente e nunca se resolve sozinha.

Como recuperar um ambiente assim degradado?
É neste ponto que se insere a chamada Política de Tolerância Zero, que recupera em primeiro lugar a ação do Estado sobre o Estado, depois a ação do Estado sobre o ambiente, e finalmente reconquista a colaboração da população para a proteção do ambiente comum.

O melhor modo de ilustrar estes três tipo de ações é apresentar o exemplo mais conhecido, iniciado na cidade de New York quando Rudolph Giuliani ainda não era prefeito. O prefeito de NY na ocasião era David Dinkins, e Rudolph Giuliani seria seu sucessor.

A situação em NY era crítica: os sem-teto ocupavam espaços públicos como praças, parques e o metrô, faziam suas necessidades fisiológicas nas calçadas e mendigavam agressivamente, eventualmente até com ameaças; pichações tomavam conta da paisagem urbana; gangues de desordeiros proliferavam livremente e tomavam conta de territórios.

O ponto de estrangulamento do sistema era o metrô, necessário para o transporte de três milhões de pessoas por dia e tornado um ambiente imundo, incivilizado e perigoso, dominado por gangues, onde ocorriam assaltos e tráfico de drogas.

Kelling, um dos autores do estudo anteriormente citado, e William Bratton, um policial de brilhante carreira em Boston, foram contratados para estudar e resolver o problema.

A maior dificuldade, e a primeira que teve que ser resolvida, foi convencer os policiais de que algo deveria ser feito, e que este algo não era combater o crime com mais violência, nem promover ações isoladas tais como grandes investigações para desbaratar quadrilhas, e muito menos propor aumento de penas e tratamento mais rigoroso para os infratores, mas simplesmente recuperar a polícia por dentro e torná-la novamente uma instituição promotora de segurança e harmonia social. Somente após vencida esta dificuldade é que foi possível aplicar a Teoria das Janelas Quebradas em NY.

Consertando a primeira Janela Quebrada em NY
O prejuízo para a cidade de NY apenas em passagens de metrô não pagas estava calculado na ordem de US$ 80,000,000.00 anuais. Bratton decidiu atacar em primeiro lugar esta janela quebrada, e passou a colocar policiais à paisana junto às catracas no metrô. Quando um grupo pulava as catracas sem pagar, a qualquer hora do dia ou da noite, todos recebiam imediatamente voz de prisão, eram conduzidos à delegacia, identificados, revistados, fichados, intimados a retornar para depor e então liberados, a menos que alguém já estivesse sendo procurado, o que se verificou ser o caso em muitas ocasiões.

Saltar a catraca sem pagamento não era motivo suficiente para manter alguém detido, mas desobedecer à intimação para depor sim. Portanto, caso alguém não cumprisse a ordem para prestar depoimento, em uma segunda detenção poderia já permanecer preso.

A população que ainda pagava as passagens começou a aplaudir quando acontecia cada um destes episódios de detenção em massa. Começou a haver a percepção de que estava valendo a pena agir dentro da lei, afinal a polícia estava agindo de acordo com a lei e garantindo o cumprimento da lei. Sem que tenha havido aumento da violência, o número de pessoas que passavam sem pagar diminuiu rápida e drasticamente.

Interessantemente, e de acordo com a Teoria das Janelas Quebradas, uma quantidade significativa dos detidos por pular catracas estava portando armas e drogas, ou estava sendo procurado por crimes anteriores.

Em pouco tempo ficou claro que estavam circulando menos armas ilegais e menos drogas, ocorrendo menos assaltos e menos homicídios, e tudo isso em função de haver uma nova visão no comando da polícia, focando suas energias mais em promover o cumprimento da lei do que em combater o crime após sua ocorrência.

Os resultados e a ampliação do programa
O sucesso desta primeira iniciativa fundamentada na Teoria das Janelas Quebradas levou à recuperação do metrô de NY para os cidadãos e fez com que Rudolph Giuliani, eleito em 1993, nomeasse Bratton para a chefia do Departamento de Polícia.

Bratton mantinha a convicção de que o policial deve ser um exemplo para a comunidade e trabalhar em parceria e colaboração com a população. Ele reestruturou o Departamento de Polícia de NY: policiais corruptos perderam seus empregos e foram presos, criando a possibilidade de ampliar a aplicação do programa anti-janelas quebradas a toda a cidade.

A primeira janela quebrada a ser consertada neste novo momento foi a eliminação da extorsão de motoristas nas sinaleiras por infratores que exigiam dinheiro após limparem os pára-brisas dos automóveis sem serem solicitados nem autorizados a fazê-lo. Novamente eram expedidas intimações para depor que, se não cumpridas, resultavam em prisões no caso de uma segunda detenção. A certeza da punição eliminou em poucas semanas um problema que perdurava há anos.

A manutenção da lei, da ordem e da harmonia provou ser responsável pela identificação de criminosos procurados e pela evitação de muitos outros crimes: um indivíduo foi preso por urinar em um parque e no interrogatório revelou a localização de um esconderijo de armas ilegais; um motoqueiro detido por estar sem capacete portava armas; um camelô detido com mercadoria suspeita revelou o paradeiro de um receptador.

A experiência em NY demonstrou que em inúmeros casos o indivíduo que não se importa de cometer um pequeno ilícito pode estar ligado a ilícitos bem maiores. E, nos casos em que não está ligado a ilícitos maiores, a alta chance de ser pego e de ter que responder por um pequeno ilícito (mesmo que tenha apenas que prestar um simples depoimento) é bastante eficaz na prevenção de novos delitos. Mas, mais importante que tudo, mostrou que se o Estado cumprir sua parte, cumprir a lei e fazer cumpri-la, receberá o apoio da população para manter a legalidade.

Conclusão:
São três os pressupostos básicos da Teoria das Janelas Quebradas e da conseqüente aplicação de uma Política de Tolerância Zero:

1) Reformulação da estrutura e do funcionamento das instituições do Estado, tornando-as modelares para a prestação dos serviços a que se destinam, ou seja, aplicação do princípio da Tolerância Zero em primeiro lugar às instituições do Estado.

2) Atuação das instituições e dos agentes do Estado rigorosamente dentro da lei e focados nas necessidades reais das comunidades, promovendo benefícios ao invés de apenas procurar punir o mal já ocorrido.

3) Reconquista da confiança da população através de resultados visíveis e significativos, promovendo maior interação e a formação de parcerias entre o Estado e seus cidadãos.

Embora existam críticas à aplicação da Teoria das Janelas Quebradas e da Política de Tolerância Zero em função de este tipo de ação recair principalmente sobre populações pobres e minorias raciais, é fato que seu verdadeiro foco não são grupos específicos, mas condutas específicas, e que a radicalidade da aplicação do primeiro preceito – a aplicação do princípio de Tolerância Zero em primeiro lugar em relação às instituições do Estado – promove condições não apenas para o combate à corrupção e à criminalidade mas também para o desenvolvimento de instituições mais sadias e com melhores condições de prestar os serviços que devem à população.

As instituições policiais em especial se vêem obrigadas a assumir um novo paradigma, de trabalhar em conjunto com a população para promover a ordem, tendo os agentes policiais a obrigação de comportarem-se como cidadãos-modelo. Não é um mau negócio para ninguém, e não é pedir demais: aqueles que não se considerarem em condições de agir de modo exemplar não deveriam mesmo ser agentes do Estado.

2 comentários:

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